Relevância atemporal
Aqui no Brasil, o autor com mais obras traduzidas no mundo e o maior número de adaptações para cinema, teatro e televisão é Jorge Amado. Mesmo quem nunca leu um livro sequer dele conhece alguma de suas histórias por meio das inúmeras adaptações.
A gente aqui sempre diz que, além de entretenimento, a arte é uma importante ferramenta de ensino, aprendizagem, questionamento do status quo, reflexão e até denúncias sociais.
Jorge Amado tem obras com forte cunho político e ideológico, abordando questões consideradas relevantes até os dias de hoje: a seca no Nordeste, menores abandonados, prostituição, desigualdade social, venda de pessoas, conflitos por posse de terra, exploração de mão de obra, o banditismo no sertão etc.
Mesmo nos seus romances da segunda fase, que trazem crônicas de costumes, vemos questões políticas e históricas como pano de fundo.
Tereza Batista e o abuso infantil
Mesmo em pleno século XXI, continuamos nos deparando com casos de crianças que sofrem abuso sexual por adultos da família ou por amigos da família. Acabamos de assistir à cobertura do caso da menina de dez anos que engravidou, teve que passar por um aborto e ainda ser assediada por grupos antiaborto.
Em Tereza Batista cansada de guerra, romance de Jorge Amado publicado em 1972, temos a história de uma mulher que foi vendida na adolescência para um capitão que a estupra de forma cruel e a transforma em escrava sexual.
O sociólogo e crítico literário Antonio Candido afirma que “a literatura é um produto social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre”. Então, não é de se estranhar que a pedofilia seja uma temática recorrente na literatura. Ela pode ser abordada como denúncia e crítica social ou de forma romantizada, que serve para endossar essa prática criminosa.
No caso de Tereza Batista, o autor usa o tema não apenas como crítica à prática da venda de adolescentes, mas também para mostrar a força dessa mulher, que desde nova, teve que enfrentar com determinação todas as desgraças que a vida lhe atirou.
A venda e o estupro são apenas o início da trajetória de Tereza, que não se conforma com injustiças e luta para encontrar seu lugar no mundo. Com certeza, é uma das protagonistas mais fortes e mais sofridas de Jorge Amado. Vale muito a leitura.
A sensualidade e a força de Tieta
Uma característica muito presente em Jorge Amado é a força das personagens femininas, e isso em vários de seus romances, mesmo os do início da carreira. Pode parecer pouco se analisarmos com o olhar de hoje em dia, mas se levarmos em conta a época em que os romances foram escritos, a coisa muda de figura.
Vamos pegar o exemplo de Tieta do Agreste, romance publicado em 1977, adaptado como telenovela em 1989 e para o cinema em 1996.
Tieta é uma adolescente pastora de cabras que descobre os prazeres do sexo e se deixa levar por eles. É dedurada pela irmã, leva uma surra do pai e é expulsa da cidade. Passam-se 25 anos e Tieta, agora uma viúva rica, volta para sua cidade, a fim de acertar contas com o passado, por assim dizer. (Esse é um resumo bem resumidinho — hehe. A narrativa é BEM mais que isso.)
Para contar essa história, Jorge Amado cria uma protagonista feminina forte, dona do próprio nariz, poderosa, que não se deixa dominar por homem nenhum. Usando termos de hoje, podemos dizer que é uma mulher empoderada. Ela também é inteligente e sensual e não tem vergonha dessa sensualidade nem de sua liberdade sexual.
Tudo isso em um livro lançado em 1977, em plena ditadura militar e em uma sociedade altamente conservadora e patriarcal. Infelizmente, as mulheres até hoje, depois de quase 45 anos do lançamento do livro, ainda são julgadas por sua sexualidade…
Mas voltando ao livro: Tieta, assim como outras mulheres na obra do autor, é a dona do próprio destino, é forte e usa essa força para lutar pelo que quer, usando as armas que têm.
Já dissemos que Jorge Amado sempre foi engajado politicamente e que esse é um traço presente em suas obras. É um escritor que sempre buscou dar voz às minorias no seu texto, fugindo do lugar comum e do que era esperado. É maravilhoso ler um livro escrito há mais de quarenta anos que continua tão atual.
Gabriela, a pipa e o contexto histórico
Para encerrar nossos posts sobre o grande Jorge Amado, escolhemos o que talvez seja o romance mais conhecido dele: Gabriela, cravo e canela, lançado em 1958 e adaptado para a TV em 1965, em 1975 e em 2012, e para o cinema em 1983.
Novamente, temos como protagonista uma mulher forte, não branca e senhora do próprio destino, que vai atrás do que quer e faz coisas… questionáveis (não vamos dar spoiler).
Este post ilustra uma cena icônica na TV, e aproveitamos o ensejo para falar de contexto histórico. A famosa cena (que não existe no livro) mostra uma Sônia Braga moleca, subindo no telhado para pegar uma pipa. Isso causou furor na sociedade brasileira da década de 1970 por mostrar a atriz montada no telhado com a bunda empinada, embora coberta pelo vestido, com uma leve sugestão de que, se ela se mexesse um pouquinho, mostraria a calcinha. É tudo muito discreto e inocente na visão de hoje, pois já estamos cansados de ver bunda e peito na TV. Mas, para aquela época, foi um escândalo! A cena entrou para a história da TV brasileira.
Logicamente, houve uma grande expectativa em relação à cena no remake, com Juliana Paes no papel principal. Na nossa humilde opinião, como era de se esperar, a cena ficou sem graça, primeiro por ser uma cópia e, segundo, porque o remake foi numa época em que ver a calcinha de uma mulher na TV não é nenhuma novidade.
Algumas curiosidades sobre o romance de Jorge Amado:
- Gabriela, cravo e canela foi traduzido para mais de 30 idiomas, incluindo chinês, grego e árabe.
- O livro ganhou vários prêmios, entre os quais o Jabuti de 1959.
- A primeira edição (Livraria Martins Editora) teve ilustrações de Di Cavalcanti.
- O livro foi best-seller no ano de lançamento. No fim do mesmo ano, já estava na sua sexta tiragem!
Amado por todos
Como podem ver, não é necessário escrever um texto neutro para agradar a gregos e troianos! O autor pode usar sua obra para expressar crenças políticas, fazer críticas sociais etc.
Se você tem vontade de fazer isso, mas não sabe bem como encaixar o tema na sua história, nossa sugestão é que escolha um dos muitos romances de Jorge Amado, leia e analise como ele usa esses elementos para enriquecer a trama. 😉