O psiquiatra Carl Gustav Jung escreveu sobre personagens que se repetem com frequência nos sonhos (ao observar pacientes) e também em mitos de culturas distintas. Ele sugeriu que esses arquétipos refletem diferentes aspectos da mente humana — nossa personalidade se divide em personagens para desempenhar o teatro da vida. E essa forte correspondência entre sonho e mito o levou a considerar que a origem disso é o inconsciente coletivo da raça humana, o que, é claro, torna os modelos míticos psicologicamente verossímeis.
Para Jung, todos os seres humanos conhecem os arquétipos no nível inconsciente. Mas trazer esse conhecimento inconsciente para o consciente é uma ferramenta poderosa para as escritoras e os escritores decidirem como os personagens devem agir para cumprirem seu papel dentro da narrativa. A fala não pode trair as ideias. É claro que não existe uma regra fixa; alguns personagens têm atributos de mais de um arquétipo e, ainda, passam por mudança de humor.
Acreditamos que esse tema é muito relevante para autoras e autores, pois definir o arquétipo do personagem pode ser determinante para tomar decisões melhores e mais críveis em relação ao comportamento, às reações e às motivações dele.
Você sabe quais são os arquétipos?
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A criadora & O criador
O criador acredita que, se você consegue imaginar alguma coisa, isso pode ser criado. Os personagens que vestem esse manto desejam realizar sua visão e criar coisas relevantes e duradouras, capazes de fazer diferença no mundo. Eles não sossegam o facho até que consigam concretizar o que pensaram. Seu maior medo obviamente é o fracasso ou a mediocridade.
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Um exemplo bem clássico de inventor que leva a execução da sua visão às últimas consequências é o Dr. Victor Frankenstein, de Mary Shelley. Durante a busca incansável pela realização de seu projeto, ele sacrifica a saúde e o convívio com a família.
A inocente & O inocente
O inocente é aquele personagem extremamente crédulo e otimista, cujo maior desejo é viver feliz para sempre. Teme fazer coisas erradas e ser punido por isso. Também é conhecido como ingênuo, romântico ou sonhador. Pelo lado negativo, é um personagem cuja inocência é tanta que pode acabar se tornando um verdadeiro chato de galocha.
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Uma estratégia usada por alguns escritores é iniciar a trama com um personagem inocente e mostrar, no decorrer da história, como ele vai perdendo essa característica. Um ótimo exemplo disso é Calisto, protagonista do clássico da literatura portuguesa “A queda dum anjo”, de Camilo Castelo Branco. Calisto é um homem honrado que preza pela moral e pelos bons costumes, mas se deixa corromper pelo luxo de Lisboa. Outro exemplo, talvez um pouco mais conhecido, é o Neville Longbotton, que procura sempre seguir as regras e chega a tentar impedir que os amigos saiam do dormitório à noite.
A cuidadora & O cuidador⠀
O cuidador é aquele personagem que tem como principal objetivo proteger e cuidar dos outros. Está sempre disposto a ajudar. É extremamente compassivo e generoso, mas pode acabar sendo explorado.
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Esse personagem teme muito a ingratidão. Pelo lado negativo, pode começar a desejar a gratidão das pessoas e se tornar amargo quando não recebe a apreciação que acredita merecer.
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Na literatura, existem muitos personagens com esse perfil. Em geral, aliados/amigos do protagonista/herói que estão sempre dispostos a ajudar. A Hermione é um ótimo exemplo disso. Ela é inteligente, certinha e estudiosa, mas acaba se metendo em várias aventuras para proteger os amigos. Outro exemplo clássico é Watson, fiel escudeiro de Sherlock Holmes, que decide acompanhar o amigo para registrar e publicar os relatos dos casos resolvidos pelo detetive.
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A mágica & O mágico
⠀Acho que você já percebeu que o nome dos arquétipos deve ser interpretados de forma ampla, né? O personagem regido pelo arquétipo do mágico é aquele que faz as coisas acontecerem, meio como se fosse o pontapé inicial da história. Podemos até dizer que é a partir da ação dele que toda a história tem início.
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Também chamado de arquétipo do curandeiro, xamã ou líder religioso, o maior desejo do mágico é ter uma compreensão das leis fundamentais do universo, e seu maior objetivo é realizar o sonho das pessoas. Pelo lado negativo, pode se tornar manipulador; pelo positivo, ele é aquele que sempre tenta buscar uma solução que beneficie todos os envolvidos.
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Nesse arquétipo, fica ainda mais claro que o personagem pode alternar entre alguns arquétipos de acordo com a necessidade da história, embora ele sempre tenha um dominante. O mágico pode ser positivo, negativo ou neutro. É bem comum que um vilão, ou seu comparsa, represente o papel de mágico em algum momento.
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Um ótimo exemplo desse arquétipo é o Coelho Branco de “Alice no País das Maravilhas”, pois é a partir do momento que ela o vê que toda a aventura começa. Ele é o personagem que tira o protagonista/herói da inércia e dá início à história.
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Se entrarmos nos contos de fadas, podemos considerar que o Espelho da Bruxa Má é um mágico neutro, pois deve obediência ao dono.
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A governante & O governante
⠀O que rege esse arquétipo é o poder! Para ele, é só isso que importa. Ele quer ter o controle total das coisas para chegar ao resultado que espera. Obviamente, seu maior medo é justamente… perder o poder!
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Pelo lado negativo, pode acabar se tornando autoritário, centralizador, isolando-se na posição de controle, mas, pelo lado positivo, ele é muito responsável e tem um senso de liderança bem aguçado.
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Um bom exemplo de governante na literatura brasileira é o Sargento Getúlio, um dos personagens que discutimos no nosso vídeo sobre construção de personagens, que está disponível no YouTube (bit.ly/personagensnacionais). Sei que somos suspeitas, mas vale muito assistir!
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Outro exemplo forte de governante, dessa vez pelo lado negativo, é “aquele que não deve ser nomeado”. Sim, ele mesmo, Voldemort. Sua sede de poder é o que rege toda a trajetória de Tom Riddle até se tornar o lorde das trevas.
A amante & O amante
Sabe aquela pessoa que está sempre tentando agradar alguém? Então… esse é o/a amante, de acordo com os arquétipos de Jung.
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O principal foco de personagens regidos por esse arquétipo é o relacionamento com os outros. Eles valorizam a intimidade e a experiência, e não apenas no aspecto romântico, como o nome pode dar a entender. Relações de amizade e trabalho também se aplicam aqui.
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Seu maior medo é ficar sozinho, passar despercebido, ser indesejado ou mal-amado. O desejo constante de agradar pode levá-lo, no lado negativo, a perder a própria identidade e seus valores. No lado positivo, o amante está disposto a se entregar de corpo e alma aos companheiros. Na literatura, pode aparecer como um capitão de time ou o líder de um grupo.
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Um exemplo é a protagonista de um dos últimos livros da Sophie Kinsella, “Te devo uma” (que a nossa tecelã Natalie Gerhardt traduziu). A Fixie acredita que tem a obrigação de agradar a todos e de consertar todos os problemas que surgem. Essa característica a leva para o lado negativo do arquétipo, e ela precisa se esforçar muito para voltar aos trilhos.
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A tola & O tolo
Não se deixem enganar pelo nome. Os personagens regidos por esse arquétipo de tolos não têm nada! Eles vivem intensamente o momento. Gostam de brincar, se fazer de bobos, se divertir, fazer piadas e não se levam muito a sério. São alegres e estão dispostos a rir de tudo, inclusive de si mesmos. Podem funcionar como alívio cômico para uma situação dramática ou podem também dizer grandes verdades.
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Mas nem por isso esses personagens são vazios ou desprovidos de inteligência. Ao contrário, a aparência “inofensiva” acaba se tornando uma potente ferramenta para mover a história, e eles usam isso para vencer alguma situação ou algum oponente.
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O maior medo do tolo é viver uma vida sem graça e tediosa. Ele não curte muito a rotina e, pelo lado negativo, pode se tornar uma pessoa frívola, fútil, superficial e irresponsável. Um recurso muito usado na literatura é um personagem vestir o manto de tolo para passar por uma situação adversa ou enganar alguém, como Hamlet, que finge ser louco para investigar a morte do pai, e aproveita para soltar umas boas farpas na direção dos membros da corte da Dinamarca.
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Outro recurso também bastante empregado é que o tolo seja um aliado do protagonista ou do vilão.
Podemos dizer que algumas heroínas dos livros do gênero chick lit começam a história regidas por esse arquétipo e, conforme a história avança, vão amadurecendo e assumindo outros arquétipos. Nas HQs, vemos vários aliados do herói ou do vilão que usam o manto do tolo para servir como alívio cômico ou para dizer algumas verdades que ninguém têm coragem de falar.
A rebelde & O rebelde
O personagem rebelde é profundamente questionador do status quo. É aquela pessoa que pensa fora da caixinha, como dizem por aí, que não tem medo de sair do lugar comum e inovar. Ela acredita que pode mudar o mundo e romper com as amarras do sistema.
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Seu maior medo é a impotência de mudar as coisas. Ela usa como estratégia o questionamento e ações que vão de encontro às normas estabelecidas. É um personagem considerado ousado e original, à frente de seu tempo. Pelo aspecto negativo, pode enredar para o lado do crime e do terrorismo no seu afã de mudar o mundo. Não é à toa que muitos vilões se encaixam nesse arquétipo.
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Entre os diversos personagens da literatura, nós escolhemos uma rebelde que se manteve no lado positivo: a protagonista de “Orgulho e preconceito”, de Jane Austen. Afinal, Lizzie é uma personagem que dizia o que pensava e defendia a ideia de que o casamento só deveria acontecer por amor. Isso em uma sociedade em que casamentos eram arranjados, tendo, em geral, como motivação a ascensão social ou algum ganho financeiro. Você alguma vez pensou nisso? Ou só via a Lydia como a ovelha negra da família?
A exploradora & O explorador
Esse personagem representa a liberdade para fazer o que lhe passa pela cabeça. Ele quer explorar o mundo e suas possibilidades. Sabe aquele personagem que parece não ter medo de nada, que mergulha no desconhecido aparentemente sem med
o? Pois é!
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O explorador está sempre em busca de novas
experiências, não
tem medo de novidades, e sua curiosidade o faz se atirar no desconhecido. O maior medo do explorador é justamente ficar preso e empacado, vivendo no tédio.
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Pelo lado positivo, está sempre buscando a própria autonomia e é extremamente fiel à sua personalidade e à sua alma, por assim dizer. Pelo lado negativo, corre o risco de ficar andando sem destino, perdendo o senso de direção e de propósito.
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Na literatura, temos vários personagens exploradores:
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Gulliver, de “Viagens de Gulliver” (1726), clássico da literatura, escrito pelo irlandês Jonathan Swift, que narra as viagens de um navegante e suas descobertas e aprendizagens.
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Soluço, da série infantil de livros “Como treinar o seu dragão” (2003-2015), escrita pela inglesa Cressida Cowell. Logo no primeiro livro, ele se arrisca a ir contra tudo que seu povo acredita para aprender mais sobre dragões.
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Allan Quatermain, de “As minas do Rei Salomão” (1885), de Henry Rider Haggard, o primeiro romance de aventura a se passar na África e que inspirou a criação do explorador Indiana Jones das telonas.
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A sábia & O sábio
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O arquétipo do sábio também é conhecido como “professor”, “mentor”, “acadêmico”, “filósofo”, entre muitos outros nomes, e sua missão é ensinar e treinar. O sábio acredita que apenas por meio do conhecimento se pode chegar à verdade, e seu maior medo é ser ignorante ou ser passado para trás.
O arquétipo do sábio pode ajudar muito no desenvolvimento da história e na própria jornada do herói, uma vez está ali para orientá-lo, dar conselhos e passar conhecimento.
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Os exemplos de sábios nas histórias são tantos quanto os de heróis. Podemos citar o Tio Ben, que disse a famosa frase “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades” para Peter Parker, que vira o código de conduta do Homem-Aranha.
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A heroína & O herói
Na literatura, o herói ou a heroína é quem move a história, pois é por meio de suas ações que a trama se desenrola. É um sinônimo para “protagonista”. No entanto, quando falamos de arquétipo, não estamos falando de protagonismo, mas de um traço na construção da personalidade.
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Os heróis e as heroínas são pessoas corajosas, fortes e competentes, dispostas a fazer sacrifícios em prol do bem maior. Seu maior medo é serem considerados covardes ou fracos e, por isso, tentam provar seu valor por meio de atos de coragem.
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Muita gente, ao ler a palavra herói, logo imagina um personagem perfeito. Na verdade, muitas vezes eles são arrogantes por se considerarem superiores. Em seu livro “A jornada do escritor”, Vogler afirma que uma das funções do herói é “aprender ou amadurecer”, e esse aprendizado é uma ferramenta de ensino também. É só pensar na famosa expressão “moral da história”. Não são raros os casos em que o herói mete os pés pelas mãos e deixa todo mundo em risco.
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É importante dizer que é possível que um ou mais personagens secundários vistam o manto de herói (no sentido do arquétipo), mesmo não sendo o herói da trama (no sentido de protagonista). Percebem a diferença? É o exemplo de Samwise Gamgee, de O Senhor dos Anéis, que momentaneamente se torna o portador do anel apesar do perigo que este representa e então retorna para salvar Frodo, o protagonista. Sam passa a maior parte da história dentro do papel de O cuidador, mas essa mudança ocorre em função da necessidade narrativa e do desenvolvimento da relação dos dois. Sem ele, o anel não teria sido destruído. ⠀
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Pessoa comum ou órfã
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Os personagens desse arquétipo acreditam que todos são iguais e têm muita empatia com o próximo. Tudo que mais querem é ser igual a todo mundo e fazer parte de um grupo. Seu maior medo é o não pertencimento. Temem ficar de fora ou se destacar. Só querem ser pessoas comuns, podendo até abrir mão da própria identidade em prol das suas relações.
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Segundo Vogler, os arquétipos não precisam ser fixos, podendo ser “funções desempenhadas temporariamente pelos personagens para alcançar certos efeitos numa história”. Ou seja, um personagem pode ter traços de mais de um arquétipo, e cabe ao escritor escolher a combinação mais apropriada para o personagem e saber o momento de enfatizar um ou outro para mover sua narrativa.
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É até frequente nas histórias vermos um sujeito comum, com uma vida rotineira, que, de repente, se depara com uma situação que o arranca dessa zona de conforto, obrigando-o a assumir um outro papel, às vezes até mesmo o de herói.
Um exemplo disso são personagens que ganham superpoderes. Podemos pensar em Peter Parker ou em Barry Allan, dos quadrinhos. Na verdade, se observarmos esses super-heróis através da lente dos arquétipos, é possível ver como há uma mudança entre a persona da “identidade secreta” e a persona do “herói”.
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Um recurso interessante de que alguns escritores lançam mão é a figura do órfão (não por acaso esse arquétipo também é conhecido como arquétipo do órfão). Peter Parker e Barry Allan são órfãos, Harry Potter e Jon Snow também. Cada um desses personagens tem trajetórias diversas, lidam de forma diferente com a própria orfandade, mas todos têm em comum o desejo de pertencer a um grupo.
Do inconsciente para o consciente
Trazer para o nível consciente o arquétipo que rege os personagens da nossa história pode ajudar a compreender melhor como eles agem, se comportam e reagem. Ao entendermos suas motivações, podemos fazer escolhas mais críveis para suas falas e suas ações. Conhecer os arquétipos é uma poderosa ferramenta para as escritoras e os escritores resolverem algum impasse com o qual venham a se deparar no decorrer da escrita. Para Vogler, existem duas questões que o autor precisa se perguntar para “tentar identificar a natureza de um arquétipo:
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1) Qual função psicológica ou parte da personalidade ele representa?
2) Qual é sua função dramática na história?”
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Conhecer essas respostas para cada um dos personagens é importante na hora de decidir alguns caminhos que essa pessoa tomaria ou não.
Vale reforçar que um arquétipo pode ser “ativado” em um personagem regido por outro arquétipo. Um inocente pode virar um explorador quando precisa se lançar ao mundo, e o herói pode vestir o manto de explorador quando sai em busca de uma solução para um problema. A força dos personagens reside justamente nessas mudanças de manto de forma fluida e natural, para que ela possa cumprir seus papéis dentro da narrativa. Conhecer melhor essas ferramentas cria inúmeras possibilidades de desenvolvimento de personagem.
Enquanto estiver lendo um livro ou até mesmo assistindo a uma novela, um filme ou uma série na TV, tente identificar os arquétipos que regem as ações dos personagens. Você vai ficar surpreso!
Se quiser ver exemplos de arquétipos na literatura brasileira, assista ao nosso vídeo Conexões de Histórias — Personagens Nacionais, feito pelo edital Cultura Presente nas Redes, no canal do YouTube. Pega a pipoca e boa oficina. =)